quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Jurisdição constitucional: A cláusula notwithstanding

A jurisdição constitucional está sempre a inovar. Às vezes para melhor, às vezes para pior. Pouca gente sabe, mas o Parlamento canadense e as assembléias provinciais daquele país, por maioria simples, podem suspender alguns dispositivos da Carta Canadense de Direitos e Liberdade e mesmo uma declaração de inconstitucionalidade, feita pela Suprema Corte do país, por violação àqueles dispositivos. Esse poder se baseia na seção 33 da Carta, intitulada de cláusula derrogatória (notwithstanding clause), e apresenta dois condicionantes, um material, outro temporal:

  • condicionante material: somente podem ser suspensas as chamadas “liberdades fundamentais” (previstas na seção 2ª, designadamente as liberdades de consciência, de religião, de pensamento, de crença, de expressão de imprensa, de reunião e de associação), os “direitos legais” (assim chamados os direitos dos indivíduos em face do sistema de justiça, previstos entre as seções 7 e 14: direitos à vida, à liberdade, à segurança pessoal, contra buscas e apreensões desarrazoadas, contra prisão ilegal, penas cruéis e autoincriminação, à assistência jurídica, ao hábeas corpus e à presunção de inocência, dentre outros de índole processual) e os “direitos de igualdade” (seção 15, nomeadamente, igual tratamento antes e sob a lei, igual proteção e benefício da lei, sem discriminação baseada em raça, cor, religião, sexo, origem étnica e nacional ou em deficiência psicofísica). Estão fora do poder de suspensão, entretanto, os direitos “democráticos” (ou de participação das atividades políticas como votar e ser votado, legislatura máxima de cinco anos e, no mínimo, uma sessão legislativa anual, constantes das seções 3 a 5) “ambulatórios” (de ingresso, residência e saída, seção 6) e “lingüísticos” (das duas línguas oficiais do país, inglês e francês, além de línguas minoritárias, seções 16 a 23).
  • Condicionante temporal: a suspensão valerá por até cinco anos, embora possa vir a ser prorrogada a cada período, indefinidamente.


Há duas razões para a existência da cláusula. Uma de natureza pragmática; outra de cunho teórico; ambas entrelaçadamente políticas. A pragmática explica as circunstâncias em que foi aprovada a Carta. Com vistas a obter o apoio das províncias à sua inclusão nas emendas constitucionais de 1982, que complementaram o processo de “repatriação” da Constituição canadense, ela foi introduzida em conjunto com a cláusula de limitação, prevista na seção 1a da Carta. As províncias temiam a perda do poder, em face da União e de seus tribunais. A cláusula de limitação autoriza a União e as províncias a estabelecerem restrições aos direitos enumerados que forem justificadas por razões de urgência ou relevância, reconhecidas numa sociedade livre. Diferentemente da cláusula derrogatória, que deve ser expressa, a de limitação de direitos pode ser implícita, obrigando o Judiciário, no âmbito do controle de constitucionalidade, a examinar se eventual infração à Carta se justifica em face de seção 1a. A Suprema Corte assim procedeu, por exemplo, ao reconhecer legítima a lei que incriminava o discurso do ódio (R. v. Keegstra) e a obscenidade (R. v. Butler). As províncias temiam a perda do poder, em face da União e de seus tribunais.

A fusão do modelo britânico de common law, que valoriza a supremacia do Parlamento, com a orientação norte-americana de Constituição escrita e de judicial review foi a explicação teórica dada à sua previsão. Por meio dela, não se recusa a tradição inglesa e, ao mesmo tempo, se estabelece uma limitação ao processo de “americanização” do sistema de justiça do país, sem deixar de reforçar os direitos, até então, considerados apenas no plano legal.

É nesse contexto que se justifica também o prazo máximo de cinco anos de suspensão, pois é esse, como vimos, o tempo máximo da legislatura. A escolha eleitoral para manter ou modificar a maioria parlamentar funcionaria como declaração de vontade favorável ou não à suspensão do dispositivo. Fecha-se, ou tenta-se fechar, o discurso de legitimidade do controle de constitucionalidade, estabelecendo-se um equilíbrio entre Parlamento e Judiciário, arbitrado pelos eleitores (LOUNGNARATH, Vilaysoun. Towards a Theory on the Legitimacy of the Notwithstanding Clause. Berkeley: University of California Press, 1990). Tanto mais se for acompanhada de uma consulta popular (REID, Scott.“Penumbras for the People: Placing Judicial Supremacy under Popular Control.” In PEACOCK, Anthony A. (ed.). Rethinking the Constitution: Perspectives on Canadian Constitutiona Reform, Interpretation and Theory. Oxford University Press, 1996, p. 186-213).

A cláusula nunca foi usada pela União. As províncias, no entanto, já o fizeram algumas vezes. Québec, que até hoje recusa a aceitar as emendas por se ter sentido excluída das negociações, valeu-se dela para afastar a declaração de inconstitucionalidade de lei que restringia o uso de sinais comerciais à língua francesa, por violação da liberdade de expressão e dos direitos de igualdade (Ford v. Quebec (A.G.)). Assim também Alberta excluiu as uniões homoafetivas do conceito de casamento e Saskatchewan a aplicou para por fim a uma greve (KAYE, Philip. “The Notwithstanding Clause: (Section 33 of the Charter of Rights)”. Toronto: Ontario Legislative Library, Legislative Research Service, 1992).

É peculiaridade do direito constitucional canadense, embora tenha similar em Israel, que previu a possibilidade de o Parlamento desconsiderar limitação à liberdade de ocupação, que se não justificasse constitucionalmente, vale dizer, pela cláusula de restrição legítima (seção 4a). Essa previsão foi introduzida em 1994 na Lei Fundamental, inspirando-se no modelo canadense (NAVOT, Suzie. The Constitutional Law of Israel. Alphen aan den Rijn : Kluwer Law International, 2007, p. 206). O prazo máximo da suspensão é de quatro anos, todavia.O debate pró e contra é intenso. O que mais se destaca nesse debate é o conflito, para alguns, insolúvel entre democracia parlamentar e direitos fundamentais. As críticas mais ácidas apontam para a desqualificação do texto constitucional, especialmente na parte que prevê os direitos, submetendo-os à vontade empírica da maioria no Parlamento (DAVIE, Michael B. “Quebec and Section 33: Why The Notwithstanding Clause Must Not Stand”. Ancaster: Manor House Pub., 2000).

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