sábado, 19 de setembro de 2009

Análise crítica do Direito Constitucional Comparado

Aluna: Daiane Nogueira de Lira

Embora cada Estado pretenda possuir um ordenamento auto-suficiente que se origine de fontes próprias de produção normativa, definindo os princípios essenciais de sua organização e disciplinando as relações sociais, essa auto-suficiência de um ordenamento estatal não exclui a existência de conexões com outros ordenamentos externos, que pode se dá pela simples consideração de outras disciplinas normativas ou a introdução no ordenamento de regras jurídicas elaboradas e vigentes em outro ordenamento estrangeiro[1].

Segundo Vergotini, “A comparação jurídica é, pois, a operação intelectual do contraste entre ordenamentos, institutos e normas de diferentes ordenamentos que, se levadas em consideração de maneira sistemática e segundo as regras do método jurídico, assume o caráter das disciplinas científicas”[2].

Axel Tschentscher destaca que Aristóteles já havia comparado as Constituições do seu tempo, apresentando uma classificação nos livros III e IV da sua "Política" e contrastando, nos livros VII e VIII, com a República de Platão. Seu conceito de "Constituição" é substantivo, não requerendo um documento escrito, mas é centrado na forma como um Estado (cidade) está organizado. Diante disso, distingue “verdadeiras Constituições” de “perversas Constituições”. As primeiras visam a boa vida para os cidadãos e as segundas buscam o bem dos governantes. Aristóteles classifica, ainda, os Estados, a partir da análise entre o número dos governantes, da seguinte forma: governo de um pode ser monarquia ou tirania; governo de poucos pode ser aristocracia ou oligarquia e governo de muitos pode ser “polity” ou democracia[3].

O autor cita ainda a elaboração da Constituição dos EUA como outro ponto de referência histórica de comparação no constitucionalismo, em particular sua apresentação em "O Federalista"[4].
No entanto, segundo destaca Ganesh Sitaramam, não há consenso acerca do uso do direito estrangeiro na interpretação constitucional, havendo o grupo dos que justificam esse uso e o grupo que critica com base em dois argumentos centrais: a democracia liberal e a exatidão[5].

Assim, os que utilizam o argumento da democracia liberal, criticando a utilização do direito estrangeiro, defendem que é através do processo democrático de auto-governo que a Constituição expressa os valores democráticos da nação e, portanto, apenas as decisões da nação exporiam as opiniões das pessoas, de modo que qualquer material estrangeiro representaria considerar idéias e interesses de não-cidadãos. Por outro lado, aqueles que defendem o uso do direito estrangeiro invocam princípios e valores pré-constitucionais e universais, que transcendem os organismos nacionais, aplicando-se igualmente em todas as sociedades. Além disso, a aplicação do direito estrangeiro permitiria convergir práticas e normas, servindo como meio de legitimação no sistema internacional[6].

Já com base no argumento da exatidão, aqueles que criticam o uso do direito estrangeiro afirmam que esse uso corrente teria problemas metodológicos como o uso superficial das fontes, uma vez que as leis de diferentes países seriam por demais complexas, possuindo contexto próprio a demandar tempo, esforço e custos. Além disso, haveria também o problema da seletividade, no sentido de que os juízes usariam as decisões estrangeiras de forma seletiva e oportuna, buscando suporte para suas próprias posições pessoais. Em sentido contrário, há aqueles que defendem que o uso do direito estrangeiro forneceria maior informação e melhores fundamentos às decisões, trazendo novas abordagens e aquelas mais empregadas em Cortes estrangeiras, que poderia vir a ser a melhor para o caso[7].

Vergotini defende as contribuições de um estudo comparado do direito publico, em especial do direito constitucional, para compreender uma matéria que engloba temas próprios da teoria da Constituição e dos direitos de liberdade no âmbito mais amplo da teoria das formas de Estado e de governo[8].

No entanto, a função primária da comparação é o próprio conhecimento, sendo a utilização dos resultados obtidos por meio da comparação para diversos objetivos apenas sua função secundária. Portanto, a comparação é um método que permite a aquisição de novos conhecimentos, de modo que do estudo comparado de ordenamentos ou de institutos de distintos ordenamentos surgem elementos cognoscitivos indispensáveis para a própria ciência do direito constitucional. Nesse sentido, é possível citar como exemplo as concepções de “forma de Estado” e “forma de governo” que procedem de um estudo de clarificação através de investigações comparadas das experiências institucionais do passado e do presente[9].

Assim, a função da comparação jurídica, inclusive no direito constitucional, é o conhecimento, sendo a premissa necessária para utilizar os resultados da comparação, seja para fins doutrinários, seja para fins eminentemente práticos, que podem ser variados.

Destaca-se aqui a função do estudo comparado para a comprovação dos dados referentes ao conhecimento dos ordenamentos examinados, servindo como um elemento de controle para constatar a exatidão dos resultados oferecidos pelos outros métodos de investigação. Desse modo, “a comprovação das generalizações que se formulam sobre a base dos conhecimentos empíricos é uma função essencial da ciência comparada”[10]. Assim, quando os dados empíricos, estatísticos e históricos não forem suficientes, o único remédio será a comparação das soluções acolhidas pelos diversos ordenamentos, a fim de comprovar a exatidão dos dados cognoscitivos disponíveis[11].

Também é importante ressaltar a função do estudo comparado para a compreensão de institutos do ordenamento, através da confrontação com normas e práticas aplicadas por outros ordenamentos. Nesses casos, as experiências maduras em outros ordenamentos, dotados de princípios similares ao ordenamento sob referência, podem oferecer dados para reflexão úteis para compreender tanto os aspectos atuais como as perspectivas de desenvolvimento dos institutos examinados[12].

Mas talvez uma das funções do estudo comparado que tem maior aplicação na realidade brasileira, tem sido a função de auxílio à interpretação, em especial pelos órgãos jurisdicionais, destacando-se como uma técnica interpretativa dos institutos constitucionais utilizada no marco da interpretação sistemática. Com efeito, a comparação jurídica é um dos métodos a que se recorrem os tribunais constitucionais na interpretação das disposições relativas aos direitos fundamentais. Conforme salienta Vergotini, Härbele tem colocado o método comparativo, ao lado dos métodos literal, sistemático, histórico e teleológico, como o quinto método de interpretação, imprescindível na exegese das cláusulas constitucionais sobre direitos fundamentais. Inclusive tal consideração seria confirmada, no plano dos ordenamentos estatais, pela referência contida nas Constituições acerca da relevância das normas internacionais sobre direitos humanos nos respectivos ordenamentos internos[13].

Nesse ponto, em relação à Constituição brasileira de 1988, é possível citar o art. 5º, § 2º, que estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Acerca do uso de decisões estrangeiras na interpretação constitucional, Ganesh Sitaraman é mais cauteloso, citando as dez formas de uso do direito estrangeiro, classificando-as como formas não problemáticas, relativamente problemáticas e problemáticas[14].

Assim, segundo o autor, seriam casos de uso não-problemático do direito estrangeiro, não havendo ofensa a valores internos, os seguintes:
1) Citando a língua: a simples citação da língua, através de uma frase;
2) Ilustrando contrastes: entre as práticas e o direito doméstico, reafirmando valores constitucionais domésticos;
3) Reforço lógico: de modo que a decisão é fundamentada em fontes domésticas, ficando as estrangeiras como mero reforço de que a posição adotada não é irrazoável;
4) Proposições factuais: o direito estrangeiro é citado como forma de firmar um fato (legal ou não-legal) de outro país.

Já os casos de uso relativamente problemático do direito estrangeiro seriam o seguintes:

5) Consequências empíricas: determinar as consequências jurídicas de certa regra, caso adotada, o que pode ser problemática sob o ponto de vista da exatidão, já que não se pode determinar, em certos casos, todas as conseqüências possíveis;
6) Aplicação direta: quando o próprio texto constitucional sugere a aplicação direta do direito estrangeiro ou internacional. Nesse caso, a aplicação direta depende de uma teoria da interpretação constitucional;
7) Raciocínio persuasivo: como as diferentes nações teriam problemas similares, a análise de certos julgamentos pode ajudar em outros países, utilizando-se da argumentação e da lógica de uma decisão estrangeira para a decisão doméstica, sem, contudo, possuir uma força vinculante. Nesse caso, a Corte utiliza a decisão estrangeira como se fosse um artigo acadêmico.

Por fim, os casos de uso problemático do direito estrangeiro são:

8) Empréstimo autoritário: adota-se o direito estrangeiro como um precedente. Nesse caso, ofenderá os valores domésticos se aplicado sem consideração aos valores domésticos, além de ser metodologicamente problemático, uma vez que requer conhecimento considerável do direito estrangeiro, bem como de sua cultura, história e tradição;
9) Agregação: justifica-se sob teorias que dão força normativa e legitimidade para uma posição particular dominante. Para possuir força normativa, a agregação deverá ser o local de futuros debates sobre o direito estrangeiro. Geralmente é defendida sob o argumento de que “muitos pensam melhor do que um”. O problema de seguir uma decisão anterior é o risco de virar um problema em cascata, seja sobrepesando a decisão anterior, seja para manter a reputação desta. Portanto, as Cortes devem fazer uma meta-análise do direito estrangeiro dentro de cada país em que a prática está sendo agregada. Além disso, outro problema é que os países podem ser seletivos ou casuais ao escolher a decisão. Nesse caso, Ganesh Sitaraman arrola três sugestões de escolha de decisão estrangeira: exprimir uma informação particular, enfrentar o mesmo problema e refletir um julgamento independente.
10) Não-utilização: o não uso do direito estrangeiro na interpretação constitucional pode ser problemático quando certos direitos têm base pré-constitucional, de modo que o direito estrangeiro deveria ser usado para identificá-los e trazer sua normatividade como suporte, sem os quais podem haver resultados absurdos e incuráveis.

Assim, o autor conclui que a vasta maioria do uso do direito estrangeiro não é problemática, sendo alguns usos autoritários do direito estrangeiro até mesmo necessários.

Quanto à utilização de direito estrangeiro na interpretação constitucional, no Brasil, é possível destacar o uso freqüente do método comparativo pelos vários tribunais. Ana Lucia de Lyra Tavares salienta que

desde a implantação dos cursos jurídicos em nosso país, em 1827, segundo os estatutos elaborados para um curso jurídico provisório de 1825, por José Luís de Carvalho e Melo, Visconde da Cachoeira (VENÂNCIO FILHO, 1982), previa-se o estudo da jurisprudência análoga à das nações civilizadas (VALLADÃO, 1980). Essa orientação remontava ao período colonial, mais especificamente ao advento da lei da Boa Razão, de 1769, do Marquês de Pombal, que restringia a recepção da hermenêutica romanística dos doutores das principais universidades européias àquela fundada na boa razão, de acordo com o direito natural e as leis das nações cristãs iluminadas e polidas (VALLADÃO, 1980).[15]

Com efeito, é comum as decisões judiciais brasileiras, em especial, os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, contarem com referências doutrinárias e normativas estrangeiras. Nos últimos anos, é possível notar uma forte influencia do direito alemão, em especial acerca de controle de constitucionalidade.

Ademais, para Vergotini, a elaboração dos textos normativos é um momento privilegiado para se recorrer à comparação[16]. Segundo destaca, na elaboração dos textos constitucionais escritos, sempre se tem recorrido de uma forma mais ou menos sistemática à comparação, seja entre soluções já experimentadas ou entres estas e esquemas de referência elaborados pelos órgãos constituintes interessados[17]. Mas o autor adverte que,

Reconhecer a importância da comparação entre os projetos de leis nacionais e os textos normativos de outros ordenamentos não deve, obviamente, induzir ao erro de aceitar o transplante de tais textos ao ordenamento desde que realizada a comparação. Pelo contrário, é correto afirmar que a comparação tende a suscitar propostas ou a comprovar aquelas que estão amadurecendo no ordenamento em questão, e que mais que os textos considerados em si mesmos, interessam ao legislador nacional as “idéias” que estão por trás das formulações normativas ou as soluções oficiais aos problemas que se vivem no país.
Em qualquer caso, está fora de dúvida que os fatores políticos nacionais próprios do ordenamento que recorre à comparação, assim como o conhecimento do contexto político (...) podem condicionar a eventual proposta de normas que deveriam ser “transplantadas”. Neste sentido, não se pode ocultar o risco da inutilidade de uma comparação baseada unicamente no dado formal de tais textos normativos, ignorando, em troca, sua aplicação no ordenamento considerado[18].

Assinala, ainda, Vergotini que “a predisposição à comparação é inversamente proporcional à originalidade do ordenamento jurídico nacional”[19]. Portanto, embora importante, é preciso cautela com a função do método comparado de auxílio à preparação de textos normativos.

No Brasil, é possível identificar, na Constituição de 1988, a influência de várias Constituições estrangeiras, como a portuguesa, a espanhola e a italiana. Como explicita Ana Lucia de Lyra Tavares,

Na Constituição Brasileira de 1988, predominaram, como se sabe, as fontes portuguesas e espanholas. As portuguesas, por exemplo, tanto na ordem da matéria constitucional (preâmbulo, princípios fundamentais, direitos fundamentais, ordem econômica e ordem social) quanto no conteúdo. Vejam, por exemplo, os dispositivos relativos aos direitos e às garantias fundamentais – direitos à privacidade, do consumidor, à imagem e de antena. Além disso, nota-se um predomínio também dessas formas no Conselho da República, na comissão permanente do Congresso, na ação de controle de constitucionalidade por omissão etc. Em relação às fontes espanholas, destacam-se os mecanismos de democracia semidireta, como a iniciativa legislativa popular e o referendum, sabendo-se que as constituições italiana e suíça são fontes indiretas desses institutos. Da matriz doutrinária espanhola proveio o habeas data, introduzido no direito constitucional brasileiro pelo professor José Afonso da Silva, por emio de sua atuação como membro da Comissão dos Notáveis ou Comissão Afonso Arinos, que elaborou o Anteprojeto de Constituição, em 1986.
De fonte italiana, como não se ignora, foram recebidas as medidas provisórias, transpostas de um contexto parlamentarista (...). Em relação à fonte francesa, aproveitaram-se os dois turnos para eleições presidenciais e o imposto sobre grandes fortunas, que ainda não foi regulamentado.
O habitual recurso ao direito anglo-americano pode ser ilustrado com a introdução do mandado de injunção que, não obstante suas peculiaridades, tem similitudes com o writ of injuction daquele direito (SILVA, 1989) e o reconhecimento constitucional das exigências de um devido processo legal (due processo of law).[20]

Também é inegável a influência da linha constitucional norte-americana, pois, ainda que com modificações, adotou-se a sua forma de Estado (federalismo) e o regime de governo (presidencialismo).

Não há dúvida de que, em muitos outros campos legislativos, além da Constituição, a contribuição do direito estrangeiro é notória.

Roberto Mangabeira Unger critica essa prática de imitação institucional brasileira, uma vez que, quando transplantadas para o Brasil, as instituições vêm desacompanhadas da história de conflito e de transformação que as produziu, acarretando resultados inesperados quando não são minadas ou corrompidas pelas realidades do país[21]. Entretanto, segundo o autor,

Pela maior parte da história brasileira, a idéia de cópia institucional andou no cerne da cultura jurídica, na qual permanece fossilizada até hoje. Pois o resíduo do escolaticismo doutrinário que sempre dominou nossa cultura jurídica é um conjunto de regras e conceitos sobre como se organiza, ponto por ponto, uma sociedade civilizada, quer dizer uma sociedade como aquela que nos esmeramos em imitar. A ciência econômica que, nas últimas décadas do século vinte, substituiu a cultura jurídica como discurso de estado da elite brasileira, forneceu mais uma maneira de ver as instituições então dominantes nas economias do Atlântico Norte como exigências inelutáveis de liberdade e eficiência.[22]

O método comparativo tem como objeto, no direito constitucional e no direito público, os ordenamentos, institutos e normas que formam parte dos ordenamentos estatais[23]. No entanto, Vergotini adverte que o estudo do direito estrangeiro tem que ser feito com a maior precisão possível, possibilitando seu conhecimento efetivo, o que exige um conhecimento geral da história constitucional, do sistema de fontes e da aplicação real das normas constitucionais analisadas, a fim de contextualizar cada instituto em estudo[24]. Além disso, é preciso conhecer os institutos típicos do ordenamento estrangeiro e familiarizar-se com a terminologia jurídica, desconfiando de aparentes afinidades e semelhanças entre os ordenamentos em estudo[25].

Segundo Matthew, “A Constituição ‘constitui’ um Estado, prevendo as regras que regem o seu comportamento – em especial que rege o exercício do seu poder coercitivo”[26]. Assim, o realismo constitucional procura identificar e analisar todos os fatores que, significativamente, influenciam o exercício do poder público, de modo que essa visão completa de uma Constituição inclui todas as estruturas, processos, princípios e, até mesmo, as normas culturais que afetam significativamente a realidade do exercício do poder público. Portanto, somente através da análise do comportamento real das pessoas envolvidas no exercício do poder público é que podemos identificar todos os elementos da Constituição[27]. Como afirma Karl Llewellyn em relação às Constituições “uma instituição é em primeira instância um conjunto de formas de viver e fazer. Não é, em primeira instância, uma questão de palavras ou regras”.[28]

Para Vergotini, a comparação pode referir-se a ordenamentos tomados em conjunto (macrocomparação) ou setores ou institutos concretos (microcomparação), sendo mais praticável e mais proveitosa a comparação de institutos ou grupos de institutos já no âmbito de subsistema, pois a macrocomparação é extremamente ampla, podendo ser problemática e dar resultados excessivamente genéricos[29]. Conforme salienta o autor, embora o objeto da comparação seja o direito positivo efetivamente vigente nos ordenamentos afetados pela investigação comparada, a simples comparação de disposições normativas é absolutamente insuficiente, pois é preciso levar em consideração também a realidade social e, portanto, sua interpretação e aplicação prática, assim como a existência de normas não escritas, como os costumes, o que ganha especial relevância no direito constitucional em razão da influência política que condiciona a aplicação dos textos normativos. Assim, o exame da prática constitucional se converte em objeto principal do direito constitucional.[30]

Nesse mesmo sentido, também é a lição de Axel Tschentscher quando adverte que a jurisprudência do Direito Constitucional, geralmente, não reconhece a análise textual dos documentos constitucionais como um método satisfatório[31]. O autor aponta as seguintes dificuldades da comparação de Constituições através de análise textual:

1) Os textos constitucionais são incompletos, pois dão apenas uma dica da prática real em um sistema jurídico. Essa incompletude também resulta do fato de os documentos constitucionais não poderem revelar tudo sobre as organizações extra-constitucionais e sobre os processos (igrejas, grupos de pressão, mídia, exército), embora estes exerçam impacto sobre a prática constitucional;
2) Os documentos constitucionais podem ser enganadores quando práticas constitucionais se afastam do procedimento sugerido pelo texto. Alguns organismos de direito constitucional – por exemplo, nos Estados Unidos da América e também na Suíça até 1999 – indicam o estudo das decisões da Suprema Corte, em vez de interpretação textual do texto constitucional em si. A interpretação dos tribunais não só permeia o "sentido original" ou a "intenções dos fundadores", mas também amplia o texto constitucional para novos temas não previstos por seus autores;
3) Constituições são indeterminadas, possibilitando diferentes interpretações das disposições ou mesmo diferentes escolas de interpretação entre os estudiosos do direito constitucional;
4) Constituições podem ser ineficazes, de modo que texto e prática podem ser muito diferentes quando as regras legais não são, rigorosamente, aplicadas ou a Constituição é suspensa ou desobedecida; a Constituição, assim, muda seu caráter de regra para símbolo.
5) Constituições escritas são desnecessárias, no sentido de que é perfeitamente viável um Estado sem uma, sendo a Constituição da Grã-Bretanha o melhor exemplo.

Assim, segundo Axel Tschentscher, a comparação entre os textos jurídicos (macrocomparação) é apenas o primeiro passo para uma análise mais profunda dos seus institutos (microcomparação). No entanto, mesmo com todas as imperfeições da análise textual, o texto da Constituição é um importante ponto de partida para apreender o conteúdo da ordem constitucional, pois enfatiza o enfoque contemporâneo de um determinado sistema sócio-político. Mas é imprescindível perseguir abordagens mais substanciais, ou seja, a contextualização das informações sobre os estatutos e a jurisprudência com a realidade política e histórica, para realmente se compreender o significado das palavras.

Além disso, Vergotini defende que a “função essencial de um instituto é o pressuposto e o parâmetro de referência do juízo comparativo que se efetua sobre institutos de ordenamentos diferentes”[32]. Assim, o estudo comparado deve orientar-se funcionalmente, ou seja, deve levar em conta as soluções que são oferecidas aos diferentes problemas que existem no corpo social, independentemente da forma e dos conceitos próprios dos diferentes sistemas legais[33]. Portanto, a função do instituto comparado é o ponto de partida e a base de toda comparação jurídica, sendo o tertium comparationis[34].

No entanto, no campo do direito público, essa orientação funcional não significa que seja inútil a consideração de elementos formais que identificam as estruturas constitucionais. Isso porque, sobretudo nas Constituições escritas, as soluções organizativas formalizadas assumem uma função de identificação de estruturas concretas. Portanto, o objeto da comparação deve ser as estruturas jurídicas, mas as instituições que a integram devem ser examinadas à luz da função que cumprem[35].

O autor propõe, ainda, uma classificação a partir da identificação das formas de Estado, utilizando como critérios a titularidade do poder, as modalidades de exercício do poder e os fins do exercício do poder. A partir desses critérios, Vergotini distingue quatro formas de Estado:

1) Estado de derivação liberal que tradicionalmente se define como de democracia “clássica” e que está profundamente influída pela ideologia liberal. Sua Constituição enfatiza as regras referentes à titularidade do poder e às modalidades procedimentais de seu exercício, privilegiando a busca por consenso dos governados[36];

2) Estado socialista em sua versão leninista, cuja Constituição atribui maior importância à definição dos objetivos que presidem o exercício do poder. No entanto, as normas quanto à titularidade do poder e aos critérios relativos a seu exercício nem sempre permitem apreciar a função primária do partido depositário da ideologia oficial, a substancial concentração do poder e às condições do consenso dos governados[37];

3) Regimes “autoritários” que tem em comum o recurso a critérios de dotação do poder, comportando formas de concentração em órgãos monocráticos ou colegiados limitados. Também são caracterizados pelo exercício do poder independentemente da busca de um autêntico consentimento dos governados, chegando inclusive a formas de imposição[38];

4) Estados do Terceiro Mundo ou em vias de desenvolvimento, que são aqueles surgidos da experiência da descolonização, tomando como modelo as Constituições das antigas potências coloniais, optando por ordenamentos com concentração do poder e um exercício autoritário do mesmo[39].

Conclui-se, portanto, que a função primária da comparação é o conhecimento, sendo uma verdadeira ciência, resultando numa disciplina que auxilia o estudo do direito. Não se pode esquecer, ainda, que o estudo comparado vai além dos textos normativos, devendo considerar também o direito não escrito, a interpretação e a aplicação prática, além da necessidade de se dar primazia à função de um determinado instituto, e não a forma e os conceitos próprios dos diferentes sistemas legais.

Como visto, no Brasil, também é possível observar a tradicional abertura do Direito aos estudos comparados, tanto na produção legislativa, o que inclui a Constituição de 1988, como jurisprudencial e doutrinária.

Portanto, o método comparativo dos diversos ordenamentos estatais possibilita a obtenção de conhecimento e inúmeros dados relevantes ao aprimoramento dos direitos internos, bem como importantes orientações para a elaboração de instrumentos normativos e institutos estatais. No entanto, é preciso cautela para não transformar a legislação nacional numa “coxa de retalhos” e utilizar institutos jurídicos que não se adéquam à realidade local e que possam ser incompatíveis com o ordenamento jurídico nacional.

Referências bibliográficas

PALMER, Matthew. The Languages of Constitutional Dialogue: Bargaining in the Shadow of the People. In: http://papers.ssrn.com/sol3/cf_dev/AbsByAuth.cfm?per_id=120215. Acesso em: 10 de setembro de 2009.
SITARAMAM, Ganesh. The Use and Abuse of Foreign Law in Constitutional Interpretation. In: http://papers.ssrn.com/sol3/cf_dev/AbsByAuth.cfm?per_id=1107794. Acesso em: 10 de setembro de 2009.
TAVARES, Ana Lucia de Lyra. Prisma Jurídico. Contribuição do direito comparado às fontes do direito brasileiro. São Paulo, v. 5, pp. 59-77, 2006.
TSCHENTSCHER, Axel. Comparative Constitutional Law. In: http://www.servat.unibe.ch/law/icl/compcons.html. Acesso em 10 de setembro de 2009.
UNGER, Roberto Mangabeira. A segunda via: presente e futuro do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.
VERGOTINI, Giuseppe. Derecho Constitucional Comparado. Trad. Cláudia Herrera. México: Unam, 2004.

Notas:

[1] VERGOTINI, Giuseppe. Derecho Constitucional Comparado. Trad. Cláudia Herrera. México: Unam, 2004, p. 1.
[2] Ibidem, p. 2, tradução livre.
[3] TSCHENTSCHER, Axel. Comparative Constitutional Law. In: http://www.servat.unibe.ch/law/icl/compcons.html. Acesso em 10 de setembro de 2009.
[4] Ibidem.
[5] SITARAMAM, Ganesh. The Use and Abuse of Foreign Law in Constitutional Interpretation. In: http://papers.ssrn.com/sol3/cf_dev/AbsByAuth.cfm?per_id=1107794. Acesso em: 10 de setembro de 2009. p. 4.
[6] Ibidem, pp. 5-8.
[7] Ibidem, pp. 8-11.
[8] Ibidem, p. 2.
[9] Ibidem, p. 4.
[10] Ibidem, p. 9, tradução livre.
[11] Ibidem, p. 9.
[12] Ibidem, pp. 11-12.
[13] Ibidem, p. 12.
[14] Ibidem.
[15] TAVARES, Ana Lucia de Lyra. Prisma Jurídico. Contribuição do direito comparado às fontes do direito brasileiro. São Paulo, v. 5, 2006, p. 64.
[16] Ibidem, p. 15.
[17] Ibidem, p. 16.
[18] Ibidem, p. 19, tradução livre.
[19] Ibidem, p. 20, tradução livre.
[20] Ibidem, pp. 68-69.
[21] UNGER, Roberto Mangabeira. A segunda via: presente e futuro do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 27.
[22] Ibidem, p. 27.
[23] Ibidem, p. 24.
[24] Ibidem, p. 25-26.
[25] Ibidem, p. 26.
[26] PALMER, Matthew. The Languages of Constitutional Dialogue: Bargaining in the Shadow of the People. In: http://papers.ssrn.com/sol3/cf_dev/AbsByAuth.cfm?per_id=120215. Acesso em: 10 de setembro de 2009, p. 2, tradução livre.
[27] Ibidem, p. 3.
[28] Apud. PALMER, Matthew, Ibidem, p. 3, tradução livre.
[29] Ibidem, p. 27.
[30] Ibidem, pp. 28-29
[31] Ibidem.
[32] Ibidem, p. 40, tradução livre.
[33] Ibidem, p. 39.
[34] Ibidem, p. 40.
[35] Ibidem, p. 40.
[36] Ibidem, p. 45.
[37] Ibidem, p. 45.
[38] Ibidem, p. 46.
[39] Ibidem, pp. 46-47.

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