domingo, 14 de novembro de 2010

A desfaçatez dos juízes da Suprema Corte

Uma das acusações favoritas arremessadas contra o Tribunal de Roberts pelos seus críticos é que ele freqüentemente se envolve em disfarçadas revisões dos precedentes (stealth overruling). Ele corrói precedentes antigos sem expressamente rejeitá-los, distorcendo-os ou limitando-os aos fatos. Ao fim, não resta mais do que o nome. Na opinião dos críticos do Tribunal, esse é um hábito novo e muito ruim. Para redirecionar a famosa "analogia do árbitro", oferecida pelo Chief Justice Roberts em sua audiência de confirmação no Senado, é como assistir a um árbitro manipular a zona de ataque, tornando-a, às vezes, tão grande quanto o sistema solar e, às vezes, tão estreita como o buraco da agulha. Os fãs de esportes não gostam muito dos árbitros, mas podemos admirá-los por fazer o seu trabalho. Não é assim quando acreditamos que eles estão encontrando formas de burlar o sistema e quebrar as regras.

Está longe de ser claro que o "stealth overruling" é novo ou que seja usado de modo adequado. O Tribunal passou décadas removendo do solo, embaixo Plessy v. Ferguson, tijolo por tijolo, até que estivesse pronto
para derrubá-lo sem muito alarde. Para entender como o "stealth overruling" serve mais do que um instrumento retórico com que se bate o Tribunal de Roberts, precisamos entender melhor o que significa e os custos e benefícios envolvidos.



Esse é o objetivo do artigo "The Wages of Stealth Overruling", de autoria do professor Barry Friedman, da New York University School of Law. Ao fazer do "stealth overruling" um objeto de estudo acadêmico cuidadoso, Friedman espera tornar mais evidente a sua natureza e fazer um "juízo normativo" sobre a possibilidade de o fenômeno ser "baseado em fatos, não em especulação." É um objetivo digno e em grande parte Friedman consegue atingi-lo. Qualquer um que o leia sairá com uma visão mais clara e menos apaixonada sobre o confuso significado de "stealth overruling". Quero sugerir, no entanto, que existem alguns problemas internos à análise de Friedman e uma grande interrogação. Sugiro uma abordagem alternativa que está mais ligada aos problemas mais amplos da jurisprudência constitucional.

Usando uma variedade de casos modernos e centrando-se fortemente em desenvolvimentos subseqüentes do célebre acórdão da Suprema Corte em Arizona v. Miranda, Friedman oferece uma definição razoável do assunto. "Stealth overrulings", diz ele, situam-se no meio do espectro entre a superação expressa de um precedente anterior e a sua reafirmação entusiástica. Assemelha-se à revogação de um precedente sub silentio, embora uma "revogação silenciosa" seja o resultado da falta de consciência das implicações de uma decisão do presente. "Stealth overrulings", pelo contrário, são uma tentativa deliberada de esvaziar ou de limitar drasticamente uma decisão prévia para além de qualquer lógica do precedente em si, a fim de colher os benefícios da revogação sem incorrer em seus custos. Quando se envolvem em "stealth overrrulings", diz Friedman, "os juízes estão perfeitamente conscientes de que estão a ignorar [o precedente], mas escondem o fato de que estão fazendo isso." "Stealth overruling" é assim definido como a incapacidade de honrar um precedente, quer por "formulação de distinções que são infiéis à lógica do precedente ", que por reduzi-lo a seus fatos em circunstâncias em que os juízes "sabem muito bem que suas decisões são de fato dissimuladas". Esta é uma excelente definição.

Por que se envolver em "stealth overrulings"? Friedman rejeita dois argumentos possíveis - que seja uma função do minimalismo judicial ou um produto do velho problema institucional de contar até cinco (counting to five) - e lança um terceiro: os juízes aplicam o "stealth overruling" quando querem evitar a publicidade negativa de uma revogação expressa. A ênfase de Friedman, de forma coerente com sua obra recente, é na opinião pública. Instâncias inferiores e agentes do governo, diz ele, não são estúpidos: eles entendem a mensagem dada pela Suprema Corte de modo alto e claro. Tribunais e policiais têm entendido que o que Friedman e outros chamam de revogação disfarçada de Miranda significa que os agentes policiais podem violar os mais velhos precedentes, sem quaisquer consequências negativas. A reação do público pode ser subjugada, se o Tribunal for sutil no que está fazendo. A Suprema Corte, diz ele, usa dos "stealth overrulings" para enviar duas mensagens diferentes para dois públicos distintos: uma de mudança para os profissionais e outra de estabilidade e adesão à lei para as massas.

Os custos desta abordagem, segundo Friedman, são significativos. As revogações disfarçadas semeiam a confusão doutrinária nos tribunais inferiores, além de incentivarem os tribunais e os agentes públicos a desafiar seus precedentes. Mais importante ainda, para Friedman, elas removem o público de uma verdadeira parceria com o Tribunal, pois "obscurecem a percepção pública do direito constitucional, permitindo que a Suprema Corte altere o significado constitucional sem a supervisão pública." Estaríamos em melhor situação, ele sugere, se a Suprema Corte revisse os precedentes anteriores claramente, de modo que um diálogo público pudesse ter lugar sobre o verdadeiro significado da nossa Constituição.

Há muito o que discutir sobre o trabalho de Friedman. Muitos vão achar o diagnóstico dele e as suas conclusões normativas convincentes. Ademais, ele sugere uma conclusão interessante: a de que, apesar de falar (inclusive pelos próprios juízes) sobre a ascendência de originalismo na interpretação constitucional, a vontade da maioria dos membros do Tribunal, incluindo os duas mais recentes adições conservadoras, de explicitamente ignorar o que eles pensam que são precedentes equivocados sugere que, longe de serem originalistas, eles são realmente constitucionalistas do direito comum, apanhados na tarefa de interpretação (ou distorção) dos precedentes, ao invés de reduzirem as questões constitucionais a uma discussão sobre princípios. Esta é uma maneira interessante para compreender melhor a natureza, as virtudes e os vícios do Tribunal de Roberts.

Dito isto, há razões para duvidar das conclusões de Friedman. A primeira, claro, e é aquela que tem sido levantada em outro lugar sobre a sua abordagem, é que não está claro como a opinião pública realmente pesa na atividade do Tribuna, quer entre o público ou dentre os próprios juízes. Ela tem alguma importância, certamente, especialmente a longo prazo. Mas os "stealth overrulings" são projetados para o curto prazo. Se o Tribunal anda tranquilamente corroendo seus antecedentes, no longo prazo, as pessoas vão notar, tanto quanto notamos avalanches mesmo que não sejamos capazes de ver toda a acumulação gradual de neve que, finalmente, desce o morro. No curto prazo, no entanto, não está claro o quanto o público sabe ou se preocupa com a Suprema Corte. Eu não pretendo negar completamente a relação entre opinião pública e o que o Tribunal faz. Mas ela é traduzida através de um processo lento e sutil de representação política, não de uma forma mais direta. Então não é claro que a opinião pública é uma explicação suficientemente consistente para os "stealth overrulings".

Além disso, existem algumas aparentes tensões ou contradições no relato de Friedman. Por um lado, ele sugere que os tribunais inferiores e outros funcionários do governo entendem bem o emprego da revogação disfarçada. Eles não precisam quebrar a cabeça para descobrir o que está acontecendo. Só o público não é mais sábio. Por outro lado, ele escreve que os "stealth overrulings" "confundem a doutrina, o que torna difícil para os funcionários e os tribunais inferiores decidirem casos semelhantes, ameaçando o Estado de Direito." Em uma versão, a plateia de profissionais da Suprema Corte é composta por tipos sofisticados que são adeptos às leituras entranhas da Corte; enquanto em outra versão, ela estão perdida sem um mapa. Ambas não podem ser verdadeiras.

Se Friedman não foi bem sucedido em trazer um argumento convincente para a sua própria análise das causas e conseqüências do "stealth overruling" não significa que não identificou um fenômeno importante. Mas podemos refletir um pouco sobre uma abordagem alternativa, que está mais intimamente ligada a um problema fundamental da jurisprudência. Como um colega de Friedman na NYU, Rick Hill, tem observado, os juízes e os juristas têm um "profundo desejo. . . de garantir a segurança não utilitária do direito." Eles são chamados para "a caça do Snark de 'puro' valor constitucional não instrumental". Essa busca está condenada. Tribunais rotineiramente descobrem que algumas alterações posteriores de fato ou contexto desafiam seus esforços para colocar o direito em termos juridicamente puros. O direito, contudo, cede diante das exigências do mundo real. Mas os juízes são especialmente relutantes em abandonar abertamente o canto da sereia da pureza doutrinária. Se eles estão sendo genuinamente sensíveis aos novos contextos ou, como no caso de algumas decisões do Tribunal de Roberts, apenas desviando o caminho do direito constitucional, eles não estão dispostos a admitir que as ferramentas tradicionais doutrinárias lhes serão úteis como desejam.

Nesse sentido, a revogação disfarçada é apenas um exemplo particularmente gritante da má-fé que os tribunais praticam o tempo todo. "Stealth Overrulings" são uma das causas de confusão doutrinária, mas não a única. Nosso amor pela própria doutrina e especialmente a nossa fé de que a doutrina jurídica pura e nosso próprio gênio técnico forneçam as respostas para todas nossas perguntas são os verdadeiros culpados. Enquanto mantivermos essa fé, nós devemos ter todos os motivos para esperar que a nossa doutrina fuja da realidade e que a confusão, a incoerência e a insinceridade reinem. "Stealth overrulings" são, portanto, apenas um exemplo particularmente flagrante de um problema muito maior no direito constitucional.

Texto adaptado do artigo "Reversing by Degrees" de Paul Horwitz

Leia na íntegra: Barry Friedman, The Wages of Stealth Overruling (With Particular Attention to Miranda v. Arizona)

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