Há intensa discussão sobre a constitucionalidade do art. 5o, § 4º da Constituição, introduzido pela EC n. 45/2004, que submete o país à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Ora se ataca a integralidade da previsão, ora se combatem alguns dispositivos do Estatuto de Roma (ER) que seriam incompatíveis com direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Diz-se, por exemplo, que a Emenda, ao submeter o país ao TPI, violou o princípio da soberania (arts. 1º, I;. 4º, I, CRFB) (Cernicchiaro. 1999). A possibilidade de extradição de nacionais é outro ponto de inconstitucionalidade, a se consideraro disposto no art. 5o, LI. Também se alega que, ao determinar imprescritibilidade dos crimes contra os direitos humanos (art. 29), o ER feriu a legalidade constitucional estrita da exceção à prescritibilidade vale dizer, imprescritíveis são apenas aqueles que o texto constitucional diz que é e ponto final. Tudo para proteger a segurança jurídica e a pacificação dos conflitos sociais. Há quem veja, ainda, atentado ao princípio da legalidade e da tipicidade estritas dos crimes e das penas (art. 5º, II e XXXIX, CRFB), uma vez que o Estatuto define sem precisão os tipos penais e as sanções a eles impostas. Por fim, a relativização da coisa julgada nacional (arts. 17 e 20, ER) contraria o que se contém no art. 5o, XXXVI. Em algumas hipóteses, a compatibilidade do Estatuto à Constituição dependeria de mudanças formais do texto constitucional como fizeram, por exemplo, Alemanha, Bélgica, França e Portugal.
São argumentos importantes, mas não inteiramente convicentes. A soberania há muito perdeu sua aura de intocabilidade. O modelo de soberania absoluta do Estado-Nação, definido a partir de Westphalia em 1648, teve de admitir adequações a um mundo cada vez mais integrado, a compartilhamentos em sistemas de governo multinível e, notadamente, aos múltiplos sistemas de proteção dos direitos humanos, principalmente em face de atentados ou violações massivas. A Constituição parece admitir expressamente a relativização ao reconhecer, no texto originário, a prevalência do direitos humanos no âmbito das relações internacionais (art. 4º, II) e, depois da EC n. 45/2004, a própria jurisdição do TPI (art. 5o, § 4º).
Não cabe, portanto, alegar a inconstitucionalidade do Estatuto quando diz ser irrelevante a condição política do agente para fins de persecução penal. O Chefe de Estado ou de Governo, por exemplo, não pode opor ao Tribunal Penal Internacional a “sovereign immunity” ou “crown immunity” (art. 27, ER). Nem o Brasil há de fazê-lo. A mesma razão se aplica aos casos dos nacionais que podem ser "entregues" àquele Tribunal, não se aplicando a vedação do art. 5o, LI.
Trata-se a entrega (“surrender”, "remise”) de forma autônoma de cooperação judiciária internacional, prevista no Estatuto de Roma, com vistas a dar efetividade ao sistema internacional de direitos humanos. O Estatuto de Roma expressamente a distingue da extradição. Por ele, um Estado "entrega" uma pessoa, qualquer que seja a sua nacionalidade ou condição, ao Tribunal, de acordo com os termos que prevê. A extradição, por sua vez, é compreendida como a entrega de alguém por um Estado a outro Estado, conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno (art. 102, ER).
A fórmula da máxima potestade estatal não há de ser interpretada aqui como fosse obstáculo intransponível à cooperação internacional do país em favor dos direitos humanos. São eles a centralidade do sistema constitucional e o eixo normativo das relações internacionais. Por isso, violações massivas como genocídio e crimes de lesa-humanidade devem ter resposta exemplar da comunidade das nações, do Brasil inclusive, seja pelo passado (punição aos responsáveis), seja pelo futuro (desestimular novas práticas).
São crimes que, em regra, levam tempo a serem descobertos ou a terem seus perpetradores identificados e postos sob a jurisdição do Tribunal. Como suas formas e práticas são variadas e sempre estão a mudar, principalmente em vista do avanço da tecnologia da violência, seus tipos devem ser abertos, sob pena de não abranger as inovações das mentes sanguinárias. Há neles, entretanto, um conteúdo semântico mínimo, basta ler com atenção o Estatuto, que permite identificar o objeto protegido sem tergiversação, o que, parece, atende às necessidades do garantismo penal. Pelo menos daquele verdadeiramente focado nos direitos humanos.
Diga-se ainda sobre a prescritibilidade que não há "reserva de Constituição originária" para o estabelecimento de suas exceções. Nenhuma segurança jurídica poderá superá a justiça dos direitos humanos. Nenhuma pacificação social haverá se os detratores dos direitos permanecerem impunes. A memória da violência, notadamente a memória da violência impune, deixa sequelas sociais inconciliáveis.
Tenho, no entanto, como acertada a crítica que se faz à previsão de prisão perpétua para casos mais graves (77, § 1º, b, ER) em face do que dispõe o art. 5o, XLVII, b, da CRFB. Como não há exceção prevista, nem a analogia serve a tal propósito, não existe reforma constitucional de salvamento a ser feita, senão uma interpretação conformadora que, aliás, já é realizada pelo STF no caso de extradição: a convolação da pena ou a sua fixação no máximo constitucionalmente previsto. Ver sobre o assunto: SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6a. ed. S. Paulo: Malheiros, 2009, p. 181-18; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: RT, 2008, p. 847 et seq; STEINER, Sylvia Helena F.“O Estatuto de Roma e o Princípio da Legalidade”. Boletim IBCCRIM, out. 2003 (edição especial), p. 17-19.
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