quinta-feira, 5 de maio de 2011

O emo-comunitarismo naturalista de Ayres Britto no caso de união homoafetiva

No voto que Carlos Ayres Britto apresentou no julgamento da ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF, sobre o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como unidade familiar, é possível encontrar elementos que denotam um compromisso com diversas correntes do pensamento jurídico. Desde o normativismo kelseniano, à sistematicidade eficaciante de Müller, passando pelo ingrediente emotivista e comunitarista do Direito.

O argumento central

A liberdade sexual, decorrente da dignidade humana, da vedação de discriminação sexual, da legalidade, da intimidade e vida privada, e da procura republicana do bem de todos, associada ainda à ausência de expressa diferenciação de tratamento dispensado pelo texto da Constituição sobre família e orientação sexual, autoriza a identificar a união homoafetiva como entidade familiar.


Liberdade sexual como decorrência de um conjunto de direitos fundamentais

a) vedação de discriminação por sexo

A liberdade sexual é o livre usar da sexualidade, orientação e autodeterminação: Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. (item 19, p. 18).

Autoriza-se a defender não só a orientação sexual livre, mas também a transexualidade, embora não tenha dito literalmente: seja qual for a preferência sexual das pessoas, a qualificação dessa preferência como conduta juridicamente lícita se dá por antecipação (...). A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra, como sucede, por exemplo, com essa ignominiosa violência a que o Direito apõe o rótulo de estupro. Ou com o desvario ético-social da pedofilia e do incesto. Ou quando resvalar para a zona legalmente proibida do concubinato. (item 20, p. 19-20). Há uma entrega à determinação axiológica, como vemos.

b) Fundamento republicano do bem de todos

O fundamento constitucional da República de procura do bem de todos, sem preconceito de sexo, inclusive, reforça a ideia contradiscriminatória e de liberdade sexual: “Bem de todos” (...) constitucionalmente versado como uma situação jurídica ativa a que se chega pela eliminação do preconceito de sexo (item 13, p. 11). Que é preconceito? Mais que juízo prévio, é juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela (item 14, p. 12-13).

c) Dignidade da pessoa humana

A liberdade ou autodeterminação sexual é emanação da dignidade humana: Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência (item 21, p. 20).

d) Direito à intimidade e à vida privada

A liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se inscrever no âmbito de incidência desses últimos dispositivos constitucionais (inciso X e §1º do art. 5º), se houvesse enunciação igualmente constitucional em sentido diverso. Coisa que não existe (item 24, p. 22).
A dimensão da sexualidade jurídica é protegida, portanto, em dois aspectos: I - sob a forma de direito à intimidade, se visualizada pelo prisma da abstenção, ou, então, do solitário desfrute (onanismo); e II – sob a forma de direito à privacidade, se a visualização já ocorrer pelo ângulo do intercurso ou emparceirado desfrute (plano da intersubjetividade, por conseguinte). (Item 22, p. 21). Curiosa e importante distinção que deveria ter mais bem reproduzido o texto da Constituição, para mencionar intimidade e vida privada (art. 5o, X)

e) Legalidade ou permissão fraca

A liberdade sexual é também decorrência da liberdade geral ou do princípio da legalidade - permissão em sentido fraco (art. 5o, XII): [A Constituição] não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado. Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada
pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas (item 18, p. 16).

As orientações filosóficas denunciadas pela argumentação

É interessante o exame das orientações filosóficas denunciadas pela sua argumentação. Um misto de normativismo, com a referência a Kelsen (itens 17 e 18, p. 15), domesticado pela ideia de efetividade constitucional, fundada nas leituras de Müller (item 28, p. 30-31), por um certo "naturalismo", associado ao conceito de sexualidade, e por um apelo mais retórico do que efetivo (pelo menos para os propósitos interpretativos) ao comunitarismo. O sentido desse comunitarismo não é aquele referendário da tradição, ao estilo MacIntyre, mas o de matriz organicista, a tomar a família como centro da organização social. Como disse, sua compreensão comunitária tem apenas valor retórico. Na verdade, busca o reforço de uma sistematicidade interpretativa que tem a família como gênero comunitário que pode ter o casamento civil tradicional como uma e apenas uma de suas manifestações.

O naturalismo da sexualidade

O sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui
reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º[Fundamento da República promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação].). (item 12, p. 10).


Sexo e libido: “Instinto sexual ou
libido”, como prosaicamente falado, a
retratar o fato da indissociabilidade ou
unidade incindível entre o aparelho genital
da pessoa humana e essa pessoa mesma. (item 16, p. 14).

Sexo, funções e sua institucionalização pelo Direito:
em tema do concreto uso do sexo nas três citadas funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio. [De modo que] “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (item 18, p. 15-16)
.
A razoável submissão do Direito ao instinto (emotivismo jurídico)

Para Carlos Ayres, o Direito não é produto da razão cartesiana, mas de um juízo de razoabilidade e proporcionalidade dos sentimentos e instintos humanos: Direito uma técnica de controle social (a mais engenhosa de todas), busca submeter, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, as relações deflagradas a partir dos sentimentos e dos próprios instintos humanos às normas que lhe servem de repertório e essência (item 17, p. 15).

Conceito de família constitucionalmente protegida (art. 226)

Família [é tomada] em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico) (p. 30-31).

Em outro ponto, destaca: O Magno Texto Federal [não] a subordin[a] a outro requisito de formação que não a faticidade em si da sua realidade como autonomizado conjunto doméstico (item 28. p. 30). Refere-se aos arts. 7º, IV; 5º, XII, XXVI, LXII e LXIII; 191; 201, IV e §12; 203; 205 e 221, IV, CRFB.

E o §1º do art. 183, Ministro, "O título de domínio e a concessão de uso [da terra usucapida] serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil"? Exceção que confirma a regra.

Num solitário parágrafo §1º do art. 183, referir-se à dicotomia básica do homem e da 32 mulher, mas, ainda assim: a) como forma especial de equiparação da importância jurídica do respectivo labor masculino e feminino; b) como resposta normativa ao fato de que, não raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se predispõe a negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então ocupado pelo casal. Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo de serviência a valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da homoafetividade das pessoas (p. 31-32).

E a menção do art. 226 apenas a homem e mulher “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”? Estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem (...). nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade(item 35, p. 42-43)

Importância sociológica da família

Espaço ideal das mais
duradouras, afetivas, solidárias ou
espiritualizadas relações humanas de índole
privada.
O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”). (...). Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação
.
(item 30, p. 33-34).

Nítida inspiração comunitarista que se projeta na interpretação constitucional:

É desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua literal categorização com “base da sociedade” (p. 34-35).

O caput deve pautar a interpretação de todo o capítulo

Artigos que têm por objeto os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção, etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora) em que a instituição da família consiste (item 31, p. 35).

Importância jurídica da família: principal centro de concreção dos direitos fundamentais

Até porque esse núcleo familiar é o principal lócus de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo “inviolável do indivíduo”, consoante dicção do inciso XI (item 29, p. 33). No item 32, Carlos Ayres aponta alguns deles: art. 205, 227, 230 (p. 35-36).

Família e casamento

Prescindibilidade. Se, na Carta Política vencida, toda a ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a instituição da família 40 mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a família). (item 35, p. 39-40).

Família ou famílias?


A família é constituída de diversos modos, dando a Constituição preferência ao casamento, a ponto de estipular um dever legislativo de conversão da unidade familiar fática entre um homem e uma mulher em casamento (civil - §1º do art. 226), certo Ministro? Essa vertente constitucional de incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§1º do art. 226 da CF), sabido que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal sem a menor referência aos substantivos “homem” e “mulher” (p. 41-42).

Ao notar o risco da observação, ele a corrige em seguida, a equiparar casamento e unidade familiar: a expressão “entidade familiar” não foi usada para designar um tipo inferior de unidade doméstica, porque apenas a meio caminho da família que se forma pelo casamento civil. Não foi e não é isso, pois inexiste essa figura da sub-família, família de segunda classe ou família “mais ou menos” (item 35, p. 44).

Curioso circunlóquio faz, num exercício de argumentação sistemática, para demonstrar a tese da paridade: se a família, como entidade que é, não se inclui no rol das “entidades associativas” (inciso XXI do art. 5º da CF), nem se constitui em “entidade de classe” (alínea b do inciso XXI do mesmo art. 5º), “entidades governamentais” (ainda esse art. 5º, alínea A do inciso 45 LXXII), “entidades sindicais” (alínea c do inciso III do art. 150), “entidades beneficentes de assistência social” (§7º do art. 195), “entidades filantrópicas” (§1º do art. 199), ou em nenhuma outra tipologia de entidades a que abundantemente se reporta a nossa Constituição, ela, família, só pode ser uma “entidade ... familiar” (p. 44-45).

Nova tautologia incorre em seguida: não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem (p. 46). Claro está que não há proibição sem benefício ou beneficiário. Adiante, ainda, vislumbra outra forma de família ou de "unidade familiar", a monoparental (art. 226, §4º), ou a “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (p. 47).

União homoafetiva e adoção

Possibilidade. Embora não fosse objeto direto das ações, o Ministro já antecipou seu pensamento a respeito: A Constituição Federal remete à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua (dela, adoção)
efetivação por parte de estrangeiros (§5º do art. 227); E também nessa parte do seu estoque normativo não abre distinção entre adotante “homo” ou “heteroafetivo”. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5º da CF, combinadamente com o inciso IV do art. 3º e o §1º do art. 5º da Constituição.(item 36, p. 48).

Conclusivamente

Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas
para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. (item 7, p. 7).

Leia o voto na íntegra aqui

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